páginas

29 de jul. de 2013

Por Que Malcolm In The Middle É Uma Série Mais Progressiva Do Que Eu Me Lembrava

Se vocês nasceram antes de pelo menos 1998 e tinham FOX durante a infância, é provável que se lembrem com gosto da época em que Malcolm in the Middle passava na TV. Talvez, como eu, não fossem espectadores assíduos—é difícil manter agenda de séries quando mal se sabe fazer adição de números com dois dígitos—mas se enchessem de alegria sempre que vissem a música de entrada (YOU’RE NOT THE BOSS OF ME NOWWWWWWWW) sabendo que a próxima meia hora seria extremamente agradável. E como era.

Pois então, churretes. Há pouco ando me aventurando pela estrada da nostalgia, tendo decidido assistir a série de ponta a ponta. Digo rapidamente que foi uma das melhores decisões que já fiz em termos de séries, e que totalmente me surpreendi com o nível de pura qualidade dessa sitcom que nunca valorizei o suficiente. Estou falando aqui de qualidade das piadas, produção, e roteiro em geral. Gente, é sério. Sério, gente. Sério.

Mas não me surpreendi só com o nível de humor inteligente (e ainda assim incrivelmente acessível, uma conquista louvável), como também com um tipo preciso de escrita. A escrita com coisas boas. Coisas boas no sentido de representação. Sim, porque sou feminazi etc, então representatividade televisiva é algo que me deixa muito, muito feliz. E Malcolm in the Middle é o tipo de série na qual eu não esperava encontrar coisas desse tipo. Ledo engano.

Vamos lá.




PERSONAGENS FEMININAS

É meio óbvio que o show não tem tanta representatividade feminina quanto poderia ter—a família tem 5 (mais tarde 6) integrantes do sexo masculino e só a Lois pra compensar. Os meninos não têm muitas amigas meninas, então não vamos tanta gente do nosso lado da população ali. Mas, nossa. As que temos são tão boas. Elaboremos.

Primeira e obviamente, temos a Lois. A Lois é indubitavelmente a heroína da série, tanto em teoria quanto em prática. Ela é quem arca com as maiores responsabilidades, quem se estressa mais com os meninos, e sem quem todos estariam perdidos. A Lois, além disso, é retratada como uma mulher forte, rígida porém amorosa, com uma vida sexual fantástica e um marido que a ama e respeita mais do que qualquer pessoa no mundo. A Lois ainda tem inseguranças que não a enfraquecem: ela tem medo de não ser uma mãe ou esposa boa o suficiente, tem medo de não ter dinheiro o suficiente no final do mês, etc. E a narrativa a trata como 100% humana, 100% tridimensional. A Lois é quem todas as pessoas no mundo deveriam almejar a ser—ela é alguém que consegue o impossível através de vários e vários sacrifícios.

Aí temos algumas meninas secundárias e terciárias, mas que brilham no seu pouco tempo na tela. Temos a Cindy, que nas temporadas iniciais foi uma amiga/leve interesse amoroso do Malcolm. Ela é inteligentíssima, luta Krav Maga como ninguém, tem uma storyline na qual o corpo muda drasticamente e fica insegura sobre como isso vai mudar a vida dela mas sem que isso seja explorado pelo male gaze—apesar da visão da história ser do Malcolm, ele não a objetifica só porque os peitos dela cresceram absurdamente. E aí quando o Reese faz isso, a narrativa o trata como nojentão. A Cindy acaba sumindo da série depois de sacrificar a reputação dela no Ensino Médio pra salvar o Malcolm—ela grita na frente de todo mundo que eles faziam sexo, e todo mundo a acha uma vadia por isso, mas ela não se importa. Na minha mente, a Cindy acabou conhecendo uma pessoa super maneira de outra escola e as duas viveram um caso romântico incrível e ela acabou transferindo.

Temos a Nikki, que é a segunda namorada do Malcolm (mas a primeira relevante—a anterior era um relacionamento infantil e a cara dela nunca apareceu na câmera como piadinha da série). A Nikki tem um pai autoritário, veterano de guerra, e consegue ser igualmente forte. Ela e o Malcolm namoram escondidos durante alguns vários episódios, nos quais ela se mostra uma menina interessante, divertida mas ainda assim com sua própria energia—pensem numa MPDG com vida própria. Ela acaba chutando o Malcolm porque ele é egocêntrico demais, o que é lindo também. Basicamente todos os fracassos amorosos do Malcolm são tratados como culpa dele (porque realmente são), e a gente fica achando que essas meninas realmente merecem algo melhor.



PERSONAGENS NEGROS

Aqui também não temos um front muito numeroso, mas de muita qualidade. O melhor amigo do Malcolm, Stevie (o asmático de cadeira de rodas), e a família + amigos do pai dele que representam. São personagens secundários e terciários, mas tem coisas sobre eles que são tão boas que, nossa, vale totalmente.

O Stevie, pra começar, tem uma luz super positiva: apesar de ser meio apreensivo (por causa dos pais superprotetores e, convenhamos, com razão, já que o menino é asmático além de cadeirante), é uma pessoa muito boa, com mais carisma que o próprio Malcolm. O momento mais estelar do Stevie, na minha opinião, acontece numa cena na qual os meninos da turma do Malcolm (acho que na sexta série na época) falam sobre o futuro deles. O Stevie solta, entre suas usuais arfadas asmáticas, a absolutamente magnífica frase “Com a minha, inteligência, e tokenismo*, o céu, é o limite”.

O pai do Stevie e seu grupo de amigos não perdem em nada. Num episódio, convidam o Hal pra jogar pôquer com eles. Todos, exceto o Hal, são negros, e eis o twist: todos são ricos, formados em faculdade, com PhDs etc. Acho que esse é um detalhe que pode passar despercebido por muita gente—digo, não o fato deles serem de classe alta enquanto o único branco é o pobre, mas a importância disso em televisão. Um grupo de homens negros sendo retratados como refinados, inteligentíssimos, bem-sucedidos e ainda por cima super agradáveis, já que acabam ficando amigos do Hal e até formam um grupo musical mais tarde. Tem a mera ressalva de que de vez em quando eles podem dar uma enganada no Hal, que é mais ingênuo e burrinho que todos, mas nunca é com malícia alguma e no fim do dia eles são todos gente boa.

ADENDO: PERSONAGENS NATIVOS

Isso fica como adendo porque é mesmo tipo de representatividade racial, mas numa parcela menor. O único exemplo mesmo é quando o Francis acaba se casando, enquanto no Alaska, com uma menina nativa e, assim, temos exposições raras de alascanos (???) nativos. Só lembro de um momento maravilhoso, mas é tão bom que preciso mencionar: em algum episódio o Francis tá tentando se dar toda uma espiritualizada (fedendo a apropriação cultural) ou algo do tipo, e encontra o que ele considera um totem pole sagrado num canto de alguma garagem ou coisa parecida. Eis que então um nativo chega, pergunta quem ele é já que “todos meninos brancos são iguais”, e fala que fez o “monumento” com as crianças dele e que não é monumento coisa nenhuma, é só um postezinho. Sei lá, tem algo de muito, muito lindo em sitcoms abertamente fazendo piada sobre ignorância de pessoas brancas em respeito a culturas alheias e subvertendo os estereótipos de comédia.



PERSONAGENS POBRES

Um dos temas centrais da série é que a família Wilkerson (sim, o sobrenome deles é Wilkerson—só é mencionado duas vezes na série inteira, e muito sutilmente, mas eis um pedacinho de trivia inútil pra vocês) tem várias dificuldades financeiras. Apesar do Hal ser de uma família rica, ele tem um trabalho ordinário que nem a Lois, e por vezes um ou o outro teve que arranjar segundo emprego pra poder dar conta, bom, das contas. Não consegui confirmar, mas tenho a impressão de que nenhum dos dois foi pra faculdade. E enfim, com 4 (mais tarde 5) filhos é complicado ter grana sobrando de qualquer jeito.

A questão é que temos uma família protagonista pobre por todos os requisitos—compram roupa só em liquidação (“camisas de três dólares”, mencionadas em um episódio), não têm nenhum jeito de mandar qualquer um dos filhos pra faculdade, e têm um surto quando a Lois fica grávida porque realmente não têm condições de ter mais uma boca pra alimentar na casa. Várias vezes foi exposto que o Malcolm é o menino mais pobre na aula dele, sem dinheiro pra nada mais do que o basiquíssimo, e mesmo assim... Eles são uma família boa. Disfuncionais, mas não por falta de dinheiro e sim por comportamento emocional. Eles nunca perdem dignidade ou simpatia comparados à família do Stevie, por exemplo, apesar de ser classe operária.

É canônico que a família rica do Hal se distanciou dele por causa da Lois—eles a achavam muito baixa, sem modos, etc. Eles a maltratam sempre que podem, são rudes e esnobes e simplesmente maléficos. O classismo deles é totalmente repudiado pela narrativa, e os meninos têm um momento raro de união justamente pra vingar a mãe deles desses babacões riquinhos.





Provavelmente terei mais exemplos da grandiosidade dessa série, mas estou apenas na quinta temporada e, olha, esse post já tá grande o suficiente. A conclusão e moral da história aqui é que eu, na minha ignorância  e quiçá até elitismo, nunca imaginei que uma sitcom levinha da FOX do início dos anos 2000 com tão grande audiência seria tão inteligente e sensível. Possivelmente vocês também não. Um brinde a esse tipo de erro de julgamento, galera. Ele desce super bem.



* à nossa audiência cujo inglês não é bom e está curiosa, uma leve explicação sobre tokenismo já que não consegui encontrar artigo sobre em português: tokenismo é a prática de incluir uma pessoa de certo grupo minoritário somente pra servir uma cota de diversidade forçada e portanto falsa, já que a narrativa ou sociedade reduz o "token" ao seu status minoritário e não liga pro que ele possa contribuir como ser humano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário